17 dezembro 2005

Patologia mental e orgânica

Um postulado que é solo seguro nas disciplinas psicológicas, e que parece ter se consolidado na 'década do cérebro' (os anos 90 do século XX), é o de que as patologias mental e orgânica possuem uma metapatologia comum. Pressuposto epistemológico, 'mina de ouro' que parece ter sido conquistada a grande custo pelos epistemólogos da psicopatologia, e que parece não haver contestação possível.

Michel Foucault (em Doença Mental e Psicologia) remonta esse postulado de uma unidade, ou de um paralelismo entre doença mental e doença orgânica, a Kurt Goldstein, que pelo modelo da afasia, correlacionando uma lesão localizada a um dano funcional, teria conseguido, a partir da situação global da vida do indivíduo, unir as duas patologias sobre um mesmo solo. Ou seja, a partir do momento em que a afasia é localizada organicamente, dela decorrem danos funcionais, e esses danos funcionais diretamente interferem no próprio comportamento do indivíduo, poder-se-ia ter um tipo de correlação que propicie um fundamento tanto às patologias mentais quanto às orgânicas.

No entanto, contra esse postulado, Foucault propõe uma refutação baseada em três pontos, onde uma analogia entre as patologias mental e orgânica seria apenas da ordem do mito. Tais pontos seriam:

1 - a abstração de elementos individuais frente à 'doença' não se dá do mesmo modo em patologia mental e orgânica: cada elemento, na medicina orgânica, teria relação com outros elementos e sentido frente à totalidade da doença, mas teria assim mesmo sua individualidade resguardada. Já a psicopatologia, em noções como a da 'unidade significativa das condutas', condiz que um sintoma patológico, enquanto sintoma psicológico, resguarda toda uma história anterior que não dá individualidade ao sintoma (que possui seu sentido remetido e diluído nessa história).

2 - as relações entre o normal e o patológico não se dão do mesmo modo entre as duas patologias: enquanto a patologia orgânica teria suprimido a noção de 'patológico' demonstrando que a doença é uma reação adaptativa do organismo, as psicologias ainda se distribuiriam de modo em que suas categorias insistissem na divisão entre normal e patológico. O "doente" seria, assim, caracterizado em relação a uma norma adaptativa.

3 - as relações entre o doente e o meio (o médico, a sociedade, o hospital) não se configuram igualmente nos dois casos. Enquanto o doente orgânico possui sua individualidade resguardada no hospital, o doente psicológico teria toda uma série de medidas de assistência diferenciadas, e uma série de conceitos problemáticos: em que medida é livre ou autômato? Quanto deve ser tutelado pelo médico? Em que medida exerce seu desejo 'louco'?

Essas questões apresentadas por Foucault (embora de modo muito abreviado, em Doença Mental e Psicologia), merecem um bom aprofundamento e um confrontamento em relação às 'evoluções' das psicologias nas últimas épocas.

No entanto, a necessidade de 'confrontamento' não se dá apenas nesse ponto: aqui, temos apenas um Foucault epistemólogo; toda a sua arqueo-genealogia dirige-se, como diz Paulo Vaz, a uma 'ontologia do presente', a um diálogo com nós mesmos que ultrapassa a noção de ciência, diálogo essencialmente ético, e que deve ser apurado pelo profissional 'psi'.

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