20 dezembro 2005

Para haver TAZ é necessária a presença de um corpo II

Esse post é o resultado desse, desse e desse outro texto de Hakim Bey, que reproduzi aqui.

Para haver TAZ "é necessário um corpo"

Em um post anterior, vinculei uma entrevista a Hakim Bey cujos resultados são bastante curiosos. Dentre eles, a questão do corpo numa TAZ. Hakim Bey afirma categoricamente: para haver TAZ, é necessária a presença de um corpo. A Rede, em si mesma, não agencia TAZ, mas pode ser um instrumento para criar zonas temporárias de autonomia. Isso torna a situação bastante curiosa. O que quer dizer Bey quando afirma que apenas a Rede não cria TAZ? Vejamos se, como em outro lugar, os espelhos funcionarão bem.

Em um belo texto chamado O mistério de Ariadne, segundo Nietzsche, Deleuze examina o mito do Labirinto. Ariadne, a Anima, aquela que, com o homem superior e herói Teseu, carrega o fio da moralidade para conduzir-se no labirinto dionisíaco, é a "combinação da vontade negativa com a força de reação". Isto é, Ariadne com Teseu é a alma tematizada pelo ressentimento, pela negação da vida, pelo "homem verídico" e superior, que carrega a vida com um peso deveras pesado, e apenas reage passivamente a ela. Já Dionísio é aquele que se libera dos fardos da vida, "é a afirmação pura e múltipla, a verdadeira afirmação, a vontade afirmativa; ele nada carrega, não se encarrega de nada, mas alivia tudo o que vive", verdadeira possibilidade do além do homem, do além do herói-Teseu. Mas, segundo Deleuze, Dionisio não é nada sem a Anima-Ariadne, pois, para haver afirmação, é preciso um sim a ela, é preciso de um "sim ao sim", uma afirmação das potências afirmativas. Caso contrário, ainda incorrem os riscos das forças reativas. Nesse sentido, para efetivamente haver o além do homem, é necessária a união de Dionísio e Ariadne, sendo o ubermensch seu produto.

Em outro texto intitulado Sobre a Morte do Homem e o Super-Homem, Deleuze lança uma fórmula semelhante à do texto sobre Ariadne, que pode aclará-lo, e à questão aqui enunciada. Já no início do texto sobre Ariadne, Deleuze diz que o que está em jogo são essencialmente forças. O mesmo Deleuze afirma nesse segundo texto: o que é uma forma? É um conjunto, um engendramento de forças. Assim, por exemplo, a forma-homem (esse 'homem' que Foucault descreve como uma formação curiosa irrompida a partir do século XIX, e que está em vias de "morrer") são forças do homem (de querer, imaginar, conhecer, representar...) engendradas com forças da finitude, da mesma forma que o classicismo (ou forma-Deus) caracterizava-se por forças no homem que se engendravam com as forças do infinito. Há um redobramento no 'homem', que não o faz ser o Homem (sujeito e objeto por excelência) como querem as ciências humanas e toda a reflexão dormente sobre a finitude. O Homem não existiu sempre, só foi possível no momento em que suas virtualidades se engendraram com "forças" da finitude. O "homem" engendrado com o infinito (a forma-Deus) em nada deve às forças no "homem" engendradas às forças da finitude (à forma-Homem).

Mas é precisamente no momento em que o homem deixa de agenciar-se com forças da finitude, que novas formas passam a ser anunciadas (pois o que está em jogo não é mais o homem, mas sua composição com outras formas). Há uma grande proximidade com o que Deleuze chama de "sociedades de controle" com o advento do que diz, no texto sobre o super-homem, a respeito do "homem de silício". O que isso quer dizer? Que o mesmo homem que, tornado sujeito e objeto (homem entrecruzado com as forças da finitude) torna-se Homem, ao mesmo tempo fundamento de todo conhecimento, e elemento inserido nas empiricidades, esse mesmo homem, quando conjugado com outras forças, terá por resultado outra forma, outro modo de viver e experimentar a vida, irredutível à forma-Homem. Essa, para Deleuze, é a colocação correta do problema do super-homem.

Nesse ponto pode-se ver que os dois textos se encontram: entre Ariadne e Dionísio, o além do homem; na superação da forma-homem (e no advento do 'homem de silício'), igualmente se coloca de modo apropriado a questão do ubermensch. Ora, uma forma nasce a partir de um engendramento, de um entrecruzamento, de um agenciamento de forças. Quando a anima se agencia com forças reativas, há ressentimento e recusa da vida; quando se agencia com forças afirmativas - quando afirma efetivamente a afirmação -, o resultado é o além do homem, e o verdadeiro "sim" à vida.

Em relação aos dizeres de Bey, essas considerações traçam resultados interessantes. Diz Bey: a Rede por si própria não engendra TAZ, para isso, é necessário haver um corpo. A Rede - como os livros e outras coisas mais - por si mesma não permite criar uma "zona temporária de autonomização", mesmo que, em si mesma, pode implicar a abertura de novos e inusitados caminhos. Obviamente, a Rede é um entrecruzamento de inúmeros vetores, como o é um corpo, e como - no limite - pode-se estender esse argumento indefinidamente. Entretanto, quando Bey chama a atenção à necessidade de um corpo, está lançando um juízo: mesmo que um corpo se conecte à Rede, mesmo que dessa conexão gerem afetos e possibilidades de TAZ, essa possibilidade apenas é efetiva quando permite uma mudança verdadeiramente efetiva. Um corpo pode conectar-se à rede; vários corpos podem se conectar no entusiasmo do surgimento de um Partido, ou de um coletivo, ou de um movimento social. Mas isso apenas importa quando ocorre uma verdadeira afirmação dessas potências positivas. Caso contrário, um partido e um movimento não passam de discussões sem efetividade, e uma conexão prazeirosa na Rede não passa de um momento prazeiroso. Nada aí de efetivo é engendrado, como faz Bey ao chamar a atenção aos grupos de teatro que "encenam" terrorismos poéticos, sem nada compreender o que eles significam. Um terrorismo poético - como uma TAZ - serve para arrancar um corpo de seu cotidiano e de seu estado "alienado", gerando novas potencializações, e não apenas encenações de gente descolada.

Como afirma Bey em outro texto, do mesmo modo que um movimento molecular e centralizado pode ser tanto agente autonomizador quanto o seu contrário, o mesmo ocorre com a possibilidade de conexões da Rede. Se o Capital Global abraça abertamente a Internet, é porque logo após as primeiras manifestações entusiásticas da Rede (lembremo-nos dos sites que ferviam nossos olhos no final dos anos 90/início de 2000), esse mesmo entusiasmo tem sido capturado por veículos de pseudo-autonomização. Nesse sentido, o juizo de Bey - o de que a Rede, por si mesma, não agencia TAZ, para isso, é necessário um corpo - adquire sentido: a Rede em si mesma não faz nada, pode fazer apenas se suas potências afirmativas possam ser efetivamente afirmadas, ou se suas possibilidades efetivas de novas conexões possam efetivamente engendrar novas possibilidades aos "corpos".

4 comentários:

Anônimo disse...

hum, estou pensando sobre isso, incitada pelo teu texto. amanhã te respondo, preciso digerir melhor essas idéias. abs

nomadez disse...

Oi Vi,

Fico no aguardo por suas considerações, estou curioso para ler seus comentários

um abraço,

Anônimo disse...

nomadez
vou voltar pra casa hoje (estou viajando), aí te escrevo. é que quero fazer uma aproximação com uma entrevista do foucault, que é excelente, intitulada "a ética do cuidado de si como prática de liberdade" (mais ou menos isso), pois acho que algumas coisas que tem ali se conectam a essa idéia dh. bey. veremos. bem, BOAS FESTAS pra ti e que em 2006 continue blogando tb!!!
um grande abraço

nomadez disse...

Oi Vi,

liame interessante, gostaria de ver que considerações pode resultar!

um abraço,