04 novembro 2005

Ainda vivemos no país da surra

Não consegui compreender ainda a repercussão das declarações de Arthur Virgílio (PSDB-AM) e ACM Neto (PFL-BA), de que se for o presidente Lula ou quem quer que seja que esteja supostamente os vigiando (ou membros de suas famílias), irá receber uma "surra". Nos noticiários, vejo tentativas de articulação do PT, ou tentativas de minar o governo vindas da oposição. Entretanto, parece que ninguém considerou a palavra "surra". Mais ainda, a ameaça de surra de parlamentares lançada a um presidente.

"Surra": o que vem de imediato à mente é a reação à desobediência do servo, do colono, do escravo ou de qualquer outro subordinado. A surra é uma palavra tradicional e incomodamente corriqueira no Brasil. Indica os desobedientes que são merecedores de uma verdadeira "tunda", executada pelos capatazes do coronel ou do dono das terras. Não entendo como tal palavra condiz com a atitude de políticos "democraticamente" eleitos pelo povo (seja enunciada em sentido explícito ou "figurado"), que tratam a si mesmos por "vossa excelência", e ameaçados por supostos perigos, lançam já o veredito: seja quem for (e cuide-se você, presidente!), levará uma surra. Especialmente porque vigiar e ameaçar é crime, e acusações sejam quais forem devem ser apresentadas com provas.

Como previsível, alguns jornalistas tentaram mais tornar tudo uma baixaria generalizada, do que interrogar a gravidade do uso dessa palavra. Como saiu em outro texto da Agência Estado, as declarações sobre a surra tornaram-se simplesmente discussão sobre qual ou tal parlamentar seria o mais forte e se sobressairia na contenda. Nada sobre a seriedade das acusações, nada sobre a seriedade da palavra "surra".

Talvez essa aceitação insuspeita de declarações de políticos que podem "surrar" seus opositores (repito, em sentido figurado ou explícito) demonstra uma característica patente do Brasil: a grande confusão entre as esferas pública e privada. Num país onde certos caprichos se sobrepõem às leis, a surra dos desafetos é uma opção que cai como uma luva.

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