24 outubro 2005

Povos sem história, animais com história

o que digo é bem bobo, porque as pessoas que gostam verdadeiramente de gatos e cachorros têm uma relação com eles que não é humana. (...) o importante é ter uma relação animal com o animal. O que é ter uma relação animal com o animal? Não é falar com ele... Em todo caso, o que não suporto é a relação humana com o animal. Sei o que digo porque moro em uma rua um pouco deserta e as pessoas levam seus cachorros para passear. O que ouço de minha janela é espantoso. É espantoso como as pessoas falam com seus bichos. - O Abecedário de Gilles Deleuze.


É espantoso como as pessoas falam com seus bichos. Igualmente espantoso é encontrarmos pessoas que não possuem voz alguma. Claude Lévi-Strauss, em suas incursões nas sociedades anteriormente ditas "primitivas", mostrava, contra qualquer postulado anterior - apoiado nos evolucionismos do século XIX - que essas sociedades são muito mais complexas do que se pensava então. Os "povos sem história", se não possuiam estrutura e coerência ligados à comunicação da tradição pelas escrituras, tal como faz nossa sociedade, nem por isso seriam "involuídos" ou "simples", como o é o postulado de Haeckel que a filogênese repete a ontogênese, e como muitos insistiram que esse mesmo movimento acompanha a própria história das culturas.

Em suma, o que isso tudo quer dizer? Que Lévi-Strauss, para além do discurso tagarela de nossa soberania eurocêntrica, nada mais faz do que cindir esse discurso mostrando que há uma vivacidade discursiva que lhe é exterior. Há voz lá onde não havia voz; há complexidade lá onde havia apenas o primitivo; nossas verdades e nossa "evolução" são situações de uma cultura como qualquer outra, não melhor, nem superior. Em outras palavras - e aqui reside o essencial - há uma série de "vozes" a serem recuperadas, que dizem respeito àquilo que é pretensamente exterior ao ocidente, mas ao mesmo tempo, lhe diz essencialmente respeito. O "homem ocidental" se constituiria precisamente num discurso soberano que cala outros discursos, cuja soberania só seria soberana na manutenção de um silêncio. Vê-se aí uma das tarefas principais desenvolvidas pela intelectualidade do pós-guerra: dar voz, buscar a voz daquilo cuja voz era desconsiderada. Assim os pequenos movimentos, o surgimento da anti-psiquiatria, a criação de Foucault do Grupo de Informação sobre as Prisões, as considerações sobre a "revolução molecular" de Guattari, o contemporâneo movimento da "autonomia", e assim por diante.

Dar voz àquilo que é sem voz passa a ser a muitos um imperativo, um critério político essencial, como o era antigamente nos países coloniais a constituição de sua soberania pelo silêncio de outras vozes. Curioso, nisso, é constatar os silêncios que presenciamos hoje em dia: o do desempregado, o do dito "cidadão" (pessoas sem qualquer direito de "cidadania" são atualmente chamados de "cidadãos", veja-se a maioria da população brasileira), o do pobre, o de certas culturas que dispõem de muito petróleo, o de certas religiões (ditas "radicais"), e assim por diante. Em via contrária desses povos sem voz e sem lugar "mediático" algum, é curioso constatar o cultivo de outras pretensas "vozes", na linha do que Deleuze afirma acima: num mundo em que pessoas não possuem voz alguma, há "voz" e história dada a bichos de estimação, que recebem eles mesmos por seus donos uma certa afetividade "humana". Como em um blog norte-americano que conta a história de três cachorros, e um brasileiro que conta a história de um cavalo.

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