20 setembro 2005

As Circunstâncias Atenuantes e o Nascimento da Psicologia.


A Psicologia anuncia sua origem "científica" a partir do fim do século XVIII e início do século XIX. Muitos autores encontram o "nascimento" dessa disciplina como correlato ao surgimento de várias outras problemáticas, como o das diferenças individuais, o da cognição humana, os problemas do trabalho, da educação e da saúde pública e do que doravante será chamado de "saúde mental". No campo da medição e da astronomia, a criação de instrumentos cada vez mais precisos começa a deparar-se com um obstáculo que até então não era considerado: o homem, como aquele que utiliza os instrumentos, e que faz as medidas. Curiosamente, o mesmo homem que cria instrumentos precisos para que a objetividade de suas pesquisas tenha resultados invariáveis, encontra nele mesmo diferenças que conduzem as mesmas pesquisas a medições diferentes. Há um problema - o de que, em condições semelhantes, as respostas são discrepantes -, e, correlato a ele, a abertura de um espaço que virá a ser preenchido por uma psicologia.

É curioso notar como o problema dito "científico" das diferenças entre medições adquire notável popularidade, sendo extendido - fora das pretensas curiosidades do rigor científico - às longínquas questões dos problemas de aprendizagem e da seleção profissional. Canguilhem mostra, em vários momentos, como é que surgem vários tipos de análise de diferenças individuais que, com notável rapidez, difundem-se no socius. Um caso clássico é o da frenologia, que adquiriu tanta notoriedade que tornou-se, além do mapa da mina para descobrir como o crânio de Descartes foi capaz de elaborar o Cogito, um instrumento "fabuloso" de seleção profissional.



Junto a tais problemas, uma série de transformações fazem requerer também uma análise que virá a ser de tipo "psicológico" no direito, mostrando que, como no caso da frenologia, os problemas de uma psicologia nascente sempre estiveram ligados de um modo estranho a questões que nem sempre são de ordem estritamente "científica". Nesse sentido, são notáveis vários momentos das pesquisas de Michel Foucault, a respeito do nascimento da psicologia como coexistente ao nascimento das chamadas "circunstâncias atenuantes" do direito moderno. Já em História da Loucura, Foucault encontra as condições de possibilidade de um "conhecimento psicológico" a partir da análise que faz de uma confluência entre a moral e o direito, entre as "experiências" sociais e morais com as da medicina e do direito do fim do século XVIII. Para Foucault, a "confluência" de todos esses elementos é historicamente mais uma confusão do que um acordo de métodos apropriados a problemas não resolvidos, pois o que virá a ser chamado a partir do século XIX de "psicologia positiva" é nada mais do que o revestimento "científico" de práticas e demandas não científicas, essencialmente ligadas a aspectos sociais e éticos. Isto é, o nascimento de uma ciência psicológica é tributário de práticas em primeiro momento sociais e morais, que apenas num segundo momento passam a ser chamadas de "científicas".


Daí a importância da análise das circunstâncias atenuantes. Na parte III de História da Loucura, é o que permite a Foucault mostrar que, entre a realidade de um crime e sua verdade, há uma defasagem na qual os determinantes de um crime nunca se reduzem à objetividade do ato, mas são sempre recuados à subjetividade do réu. Isso significa que, para além da objetividade de qualquer ação (seja ela criminosa ou não), na extensão há sempre fatores determinantes, que condizem com o que há de mais interior e privado no homem, ou seja, suas motivações, seus traços individuais, sua vida, enfim, sua subjetividade psicológica. Para um mesmo ato (criminoso, por exemplo), podem haver circunstâncias, pesos, determinações, motivações diversas, de modo que não deve ser o ato em si mesmo o único interrogado para denotar a culpa, mas sobretudo a verdade psicológica que o determinou. Mas há mais: certas "verdades", certas circunstâncias propiciam, nesse início do século XIX, maior ou menor peso, mais ou menos culpa, de acordo com sua correspondência com critérios sociais valorizados de modo positivo ou negativo pela sociedade. Um homem que mata uma mulher pode ser condenado por sua crueldade; mas as mesmas circunstâncias deveriam ser aplicadas a um marido traído que, lembrando a proteção que sua sociedade dá à instituição do casamento, comete o ato impensado de assassinar a esposa adúltera? Com certeza - nesses julgamentos do início do direito moderno - não, mas isso mostra que, no homem, todo ato presente pode ser explicado a partir de determinações que fazem parte de sua vida e de seu passado. Interrogar sobre essas determinações - e sobre seu peso - é, para Foucault, o que futuramente será chamado de "Psicologia".


O caso das circunstâncias atenuantes mostra, em Foucault, que a abertura a um conhecimento sobre o homem é correlato às suas próprias formas de julgamento sobre si mesmo. Isso parece mostrar de modo explícito o que Canguilhem talvez apenas sugira, em seu texto de 1956 sobre a psicologia, mas que parece de algum modo complementar sua conferência de 1980:o problema de uma psicologia nunca é apenas de ordem teórica ou "científica", mas perpassa necessariamente uma interrogação de tipo ético.

Nenhum comentário: