Abaixo consta excerto do livro escrito por Blanchot sobre Michel Foucault. O critério de seleção foi as considerações que Blanchot fez sobre História da Loucura. Clicando em "leia mais", pode-se ver o resto do excerto:
[p. 16]Para ser exacto, devo dizer que não tive relações pessoais com Michel Foucautl. Nunca o encontrei, excepto uma vez, no pátio da Sorbonne durante os acontecimentos de Maio de 68, talvez em Junho ou Julho (mas dizem-me que ele não estava lá), e dirigi-lhe então algumas palavras, ignorando ele quem lhe estava a falar (digam o que disserem os detractores de Maio, foi um belo momento esse, em que cada um podia falar com qualquer outro, anónimo, impessoal, homem entre os homens, acolhido sem outra justificação para além da de ser um outro homem). É verdade que durante esses acontecimentos extraordinários, eu dizia muitas vezes: Mas porque é que Foucault aqui não está? - restituindo-lhe assim o seu poder de atracção e considerando o lugar vazio que ele deveria ter poupado. Ao que me respondiam com uma observação que não me satisfazia: ele continua um pouco reservado; ou então: está no estrangeiro. Mas, precisamente, muitos estrangeiros, até remotos japoneses, estavam...
...lá. Foi assim, talvez, que perdemos a ocasião de nos encontrarmos.
Todavia, o seu primeiro livro, que lhe trouxe renome, fora-me dado a conhecer, quando o texto não passava ainda de um manuscrito quase sem nome. Era Roger Caillois quem o tinha e o propôs a alguns de nós. Recordo o papel de Caillois, porque me parece ter permanecido ignorado. O próprio Caillois nem sempre era bem aceite pelos especialistas oficiais.
[p.17]Interessava-se por demasiadas coisas. Conservador, inovador, sempre um pouco à parte, não entrava na sociedade dos que possuem um saber reconhecido. Por fim, forjara um estilo belíssimo, por vezes até ao excesso, a tal ponto que se julgou destinado a zelar - feroz zelador - pela correcção da língua francesa. O estilo de Foucault, pelo seu esplendor e pela sua precisão, qualidades aparentemente contraditórias, deixou-o perplexo. Não sabia se aquele grande estilo barroco não arruinaria o saber singular cujos múltiplos caracteres, filosófico, sociológico, histórico, o embaraçavam e exaltavam. Talvez visse em Foucault um outro ele próprio que lhe furtaria a herança. Ninguém gosta de se reconhecer, estranho, num espelho onde não distingue o seu duplo, mas aquele que gostaria de ter sido.
O primeiro livro de Foucault (admitamos que se trata do primeiro) valorizou com a literatura um tipo de relações que mais tarde seria preciso corrigir. A palavra «loucura» foi uma fonte de equívocos. Foucault só indirectamente tratava da loucura: ocupava-se antes de mais desse poder de exclusão que, um belo ou triste dia, foi instaurado por um simples decreto administrativo, decisão que, dividindo a sociedade, não em bons e maus, mas em sensatos e insensatos, permitiu reconhecer as impurezas da razão e as relações ambíguas que o poder - aqui, um poder soberano - iria manter com o que de mais bem partilhado há, enquanto não deixava de dar a entender que não lhe seria tão fácil reinar indivisamente. O importante é, com efeito, a divisão; o importante é a exclusão - e não o que se exclui ou divide. Afinal, que estranheza a da história, se o que a faz oscilar é um simples decreto e não grandes batalhas ou importantes lutas de monarcas. Além disso, esta divisão que de modo algum é um acto de maldade, destinado a punir seres perigosos porque definitivamente associais (ociosos, [p. 18]pobres, depravados, profanadores, extravagantes e, para concluir, os cabeças de vento ou os loucos) irá, por uma ambiguidade mais temível ainda, ocupar-se deles, prestando-lhes cuidados, alimentos, bênçãos. Impedir os doentes de morrerem na rua, os pobres de se tornarem criminosos para sobreviverem, os depravados de corromperem os piedosos dando-lhes o espectáculo e o gosto dos maus costumes, tudo isto não é detestável, mas assinala um progresso, o ponto de partida de uma mudança que os melhores mestres acharão excelente.
Assim, a partir do seu primeiro livro, Foucault trata de problemas que desde sempre pertenceram à filosofia (razão, desrazão), mas trata-os na perspectiva da história e da sociolo gia, privilegiando, ao mesmo tempo, na história, uma certa descontinuidade (um pequeno acontecimento faz grande diferença), sem fazer dessa descontinuidade uma ruptura (antes dos loucos, há os leprosos, e é nos lugares - lugares ao mesmo tempo materiais e espirituais - deixados vagos pelo desaparecimento dos leprosos que se instalam os refúgios de outros excluídos, enquanto esta necessidade de excluir se reitera sob formas surpreendentes que ora a revelam, ora a dissimulam).
BLANCHOT, M. Michel Foucault como o imagino. Lisboa: Relógio d´água, 1987.
Nenhum comentário:
Postar um comentário