Muito curiosa uma carta de Marilena Chauí que tem sido vinculada na informalidade dos e-mails. Aliás, há muitos momentos em que apenas a informalidade - por incrível que pareça - pode fornecer caracteres "democráticos" numa sociedade que se diz "democrática" e que, portanto, deveria desenvolver sua democracia em esfera formal - não informal, não por debaixo dos panos, não apenas nas correntes informais dos emails.
Dando voz ao silêncio de Chauí, ou melhor dizendo - já que o nome desse blog é nomadologiaz -, dando voz à própria voz que quero (esse amontoado de letras sem nome, que ainda diz "quero") vincular, abaixo reproduzo o texto de Chauí. Não se trata de concordar com uma petista, nem com uma intelectual celebrada. Basta apenas olhar ao redor e pensar um pouco no passado.
Clique em "leia mais" para o texto da Chauí
Carta de Marilena Chaui aos seus alunos
São Paulo, 31 de agosto de 2005
Prezados alunos,
Soube, por alguns colegas professores, que muitos de vocês estão intrigados
ou perplexos com meu suposto "silêncio". Digo suposto porque, como lhes
mostrarei a seguir, essa imagem foi construída pelos meios de comunicação,
particularmente pela imprensa. Na verdade, tenho falado bastante em vários
grupos de discussão política que se formaram pelo país, mas tenho evitado a
mídia e vou lhes dizer os motivos. Antes de fazê-lo, porém, quero fazer
algumas observações gerais.
1. vocês devem estar lembrados de que, durante o segundo turno das eleições
presidenciais, a mídia (imprensa, rádio e televisão) afirmava que Lula não
iria poder governar por causa dos radicais do PT, isto é, pessoas como
Heloisa Helena, Babá e Luciana Genro. Você não acham curioso que, de meados
de 2003 e sobretudo hoje, essas pessoas tenham sido transformadas pela mesma
mídia em portadores da racionalidade e da ética, verdadeiros porta-vozes de
um PT que foi traído e que teria desaparecido? Como indagava o poeta: "mudou
o mundo ou mudei eu?". Ou deveríamos indagar: a mídia é volúvel ou possui
interesses muito claros, instrumentalizando aqueles podem servi-los conforme
soprem os ventos?
2. vocês devem estar lembrados de que, desde os primeiros dias do governo
Lula, uma parte da mídia, manifestando preconceito de classe, afirmava que,
o presidente da república, não tendo curso universitário nem sabendo falar
várias línguas, não tinha competência para governar? Cansando dessa tecla,
que não surtia resultado, passou-se a ironizar e criticar os discursos de
Lula e seus improvisos. Não tendo isso dado resultado, passou-se a falar o
populismo presidencial, isto é, a forma arcaica do governo. Como isso também
não deu resultado, passou-se a falar num país à beira da crise, alguns
chegando a dizer que estávamos numa situação parecida com a de março de 1964
e, portanto, às vésperas de um golpe de Estado! Como o golpe não veio (ele
veio agora, sob a forma de um golpe branco), passou-se a falar em crise do
governo (as divergências entre Pallocci e Dirceu) e em crise do PT (as
divergências entre as tendências). Penso que um dos pontos altos dessa
seqüência foi um artigo de um jornalista que dizia que, na arma do policial
que matou o brasileiro em Londres, estava a impressão digital de Lula, pois
não criando empregos, forçara a emigração! Além de delirante, a afirmação
ocultava:
a) que aquele brasileiro estava na Inglaterra há cinco anos (emigrou durante
o governo FHC);
b) estavam publicados os dados de crescimento do emprego no Brasil nos
últimos dois anos. Eu poderia prosseguir, mas creio ser suficiente o que
mencionei para que se perceba que estamos caminhando sobre um terreno
completamente minado.
3. as duas primeiras observações me conduzem a uma terceira, que julgo a
mais importante. Vocês sabem que, entre os princípios que norteiam a vida
democrática, o direito à informação é um dos mais fundamentais. De fato, na
medida em que a democracia afirma a igualdade política dos cidadãos, afirma
por isso mesmo que todos são igualmente competentes em política. Ora, essa
competência cidadã depende da qualidade da informação cuja ausência nos
torna politicamente incompetentes. Assim, esse direito democrático é
inseparável da vida republicana, ou seja, da existência do espaço público
das opiniões. Em termos democráticos e republicanos, a esfera da opinião
pública institui o campo público das discussões, dos debates, da produção e
recepção das informações pelos cidadãos. E um direito, como vocês sabem, é
sempre universal, distinguindo-se do interesse, pois este é sempre
particular. Ora, qual o problema?
Na sociedade capitalista, os meios de comunicação são empresas privadas e,
portanto, pertencem ao espaço privado dos interesses de mercado; por
conseguinte, não são propícios à esfera pública das opiniões, colocando para
os cidadãos, em geral, e para os intelectuais, em particular, uma verdadeira
aporia, pois operam como meio de acesso à esfera pública, mas esse meio é
regido por imperativos privados. Em outras palavras, estamos diante de um
campo público de direitos regido por campos de interesses privados. E estes
sempre ganham a parada. Apesar de tudo o que lhes disse acima, fiz, como os
demais (no mundo inteiro, aliás), uso dos meios de comunicação, consciente
dos limites e dos problemas envolvidos neles e por eles. Exatamente por
isso, hoje, vocês perguntam por que não os usei para discutir a difícil
conjuntura brasileira. Tenho quatro motivos principais para isso.
O primeiro, é de ordem estritamente pessoal. Os que fizeram meu curso no
semestre passado sabem que mal pude ministrá-lo em decorrência do gravíssimo
problema de saúde de minha mãe. Aos 91 anos, minha mãe, no dia 24 de
fevereiro, teve um derrame cerebral hemorrágico, permaneceu em coma durante
dois meses e, ao retornar à consciência, estava afásica, hemiplégica, com
problemas renais e pulmonares. De fevereiro ao início de junho, permaneci no
hospital, fazendo-lhe companhia durante 24 horas. Cancelei todos os meus
compromissos nacionais e internacionais, não participei das atividades do
ano Brasil-França, não compareci às reuniões do Conselho Nacional de
Educação, não participei das reuniões mensais do grupo de discussão política
e não prestei atenção no que se passava no país. Assim, na fase inicial da
crise política, eu não tinha a menor condição, nem o desejo, de me
manifestar publicamente.
O segundo motivo foi, e é, a consciência da desinformação. Vendo algumas
sessões das CPIs e noticiários de televisão, ouvindo as rádios e lendo
jornais, dava-me conta do bombardeio de notícias desencontradas, que não
permitiam formar um quadro de referência mínimo para emitir algum juízo.
Além disso, pouco a pouco, tornava-se claro não só que as notícias eram
desencontradas, mas que também eram apresentadas como surpresas diárias: o
que se imaginava saber na véspera era desmentido no dia seguinte. Mas não só
isso. Era também possível observar, sobretudo no caso dos jornais e
televisões, que as manchetes ou "chamadas" não correspondiam exatamente ao
conteúdo da notícia, fazendo com que se desconfiasse de ambos. A
desinformação (como disse alguém outro dia: "da missa, não sabemos a
metade"), não permitindo análise e reflexão, pode levar a opiniões levianas,
num momento que não é leve e sim grave.
Além disso, a notícia já é apresentada como opinião, em lugar de permitir a
formação de uma opinião. Por isso mesmo, a forma da notícia tornou-se
assustadora, pois indícios e suspeitas são apresentados como evidências, e,
antes que haja provas, os suspeitos são julgados culpados e condenados. Esse
procedimento fere dois princípios afirmados em 1789, na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, quais sejam, todo cidadão é considerado
inocente até prova em contrário e ninguém poderá ser condenado por suas
idéias, mas somente por seus atos. Ora, vocês conhecem o texto de Hegel, na
Fenomenologia do Espírito, sobre o Terror (em 1793), isto é, a transformação
sumária do suspeito em culpado e sua condenação à morte sem direito de
defesa, morte efetuada sob a forma do espetáculo público. Essa perspectiva,
como vocês também sabem, é também desenvolvida por Arendt e Lefort a
respeito dos totalitarismos e seus tribunais, e para isso ambos enfatizam,
na Declaração de 1789, o princípio referente à não criminalização das
idéias, assinalando que nos regimes totalitários a opinião dissidente é
tratada como crime.
Assim, na presente circunstância brasileira, a impressão geral deixada pela
mídia é da mescla de espetáculo e terror, tornando mais difícil do que já
era manifestar idéias e opiniões nela e por meio dela. Meu terceiro motivo
será compreendido por vocês quando lerem os artigos de jornal que inseri no
final desta carta. Um artigo foi escrito antes da posse de Lula, alertando
para o risco de uma "transição", isto é, um acordo com o PSDB. Os outros
dois foram escritos em 2004, quando do "caso Waldomiro". Ambos insistem na
necessidade urgente da reforma política. Os fatos atuais (ou o que aparece
como fato) não modificam em nada o que escrevi há quase um ano, pelo
contrário, reforçam o que havia dito e por isso não vi razão para voltar a
escrever, pois eu escreveria algo ridículo, do tipo: "Como já escrevi no dia
tal em tal lugar...". Ou seja, se meu segundo motivo me leva a considerar
que não há a menor condição para opinar no varejo sobre cada fato ou
notícia, o meu terceiro motivo é que, no que toca ao problema de fundo, já
me manifestei publicamente.
Resta o quarto motivo. Aqui, há duas ordens diferentes de fatos que penso
ser necessário apresentar. A primeira, se refere ao ciclo "O silêncio dos
intelectuais"; a segunda, à atitude da mídia. Há 20 anos, Adauto Novais
organiza anualmente ciclos internacionais de conferências e debates sobre
temas atuais. Sempre com um ano de antecedência, Adauto se reúne com alguns
amigos para discutir e decidir o tema do ciclo.
Participo desse grupo de discussão. Em abril de 2004, quando nos reunimos
para decidir o ciclo de 2005, alguns membros do grupo (entre os quais, eu)
preparavam-se para um colóquio, na França, cujo tema era "Fim da política?",
outros iam participar de um seminário, nos Estados Unidos, sobre o
enclausuramento dos intelectuais nas universidades e centros de pesquisa, e
outros iniciavam os preparativos para a comemoração do centenário de Sartre,
símbolo do engajamento político dos intelectuais. Nesse ambiente, acabamos
propondo que o ciclo discutisse a figura contemporânea do intelectual e
Adauto propôs como título "O silêncio dos intelectuais". Uma vez feitos os
convites nacionais e internacionais aos conferencistas, recebidas as ementas
e organizada a infra-estrutura, Adauto fez o que sempre faz: com muitos
meses de antecedência, conversou com jornalistas, passou-lhes as ementas,
explicou o sentido e a finalidade do ciclo. Ou seja, no início de 2005, a
imprensa tinha conhecimento do ciclo e de seu título.
E eis que, de repente, não mais que de repente, durante a crise política,
alguns falaram do "silêncio dos inocentes", referindo-se aos intelectuais
petistas! Curiosa escolha de título para uma matéria jornalística... Veio
assim, sem mais nem menos, por pura inspiração. Mais curiosa ainda foi essa
escolha, se se considerar que, ao longo de 2005, praticamente todos os
intelectuais petistas (talvez com exceção de Antônio Cândido e de mim) se
manifestaram em artigos, entrevistas, programas de rádio e de televisão!!!
Onde o silêncio?
Como eu lhes disse, notícias são produzidas sem ou contra os fatos. E com as
notícias vieram as versões e opiniões, os julgamentos sumários e as
desqualificações públicas, culminando no tratamento dado ao ciclo, quando
este se iniciou. A mídia decidiu que o ciclo se referia aos intelectuais
petistas, apesar de saber que fora pensado em 2004, de ler as ementas, de
haver participantes que não são petistas, para nem falar dos conferencistas
estrangeiros. O ciclo virou espetáculo. Uma revista afirmou que, entre os
patrocinadores (MINC, Petrobrás e SESC), estavam faltando os Correios. Uma
outra afirmou que os participantes eram intelectuais do tipo "porquinho
prático" (não explicou o que isso queria dizer). Um jornal colocou a notícia
da primeira conferência (a minha) no caderno de política, sob a rubrica
"Escândalo do Mensalão", com direito a foto. Etc..
A segunda ordem de fatos está diretamente relacionada comigo. Quando
publiquei o artigo sobre o "caso Waldomiro", um jornalista escreveu uma
coluna na qual me dirigiu todo tipo de impropérios e usou expressões e
adjetivos com que me desqualificava como pessoa, mulher, escritora,
professora e intelectual engajada. Não respondi. Apenas escrevi o segundo
artigo, sobre a reforma política, e dei por encerrada minha intervenção
pública por meio da imprensa. A partir de então, além de não publicar
artigos em jornais, decidi não dar entrevistas a jornais, rádios e
televisões (dei entrevistas quando tomei posse no Conselho Nacional de
Educação porque julgo que, numa república, alguém indicado para um posto
público precisa prestar contas do que faz, mesmo que o meios disponíveis
para isso não sejam os que escolheríamos). A seguir, veio a doença de minha
mãe e, depois, a crise política como espetáculo.
No entanto, paradoxalmente, não fiquei fora da mídia: houve, por parte de
jornais, revistas, rádios e televisões, solicitações diárias de entrevistas
e de artigos; a matéria jornalística "O silêncio dos inocentes", não tendo
obtido entrevista minha, citava trechos de meus antigos artigos de jornal;
matérias jornalísticas sobre o PT e sobre os intelectuais petistas traziam,
via de regra, uma foto minha, mesmo que nada houvesse sobre mim na notícia.
Finalmente, quando se iniciou o ciclo sobre o silêncio dos intelectuais, um
jornal estampou minha foto, colocou em maiúsculas NÃO FALO (resposta que dei
a um jornalista que queria uma entrevista quando da reunião dos intelectuais
petistas com Tarso Genro, em São Paulo) e o colunista concluía a matéria
dizendo que o silêncio dos intelectuais petistas era, na verdade, o silêncio
de Marilena Chaui, o qual seria rompido com a conferência. Resultado:
jornais e revistas, com fotos minhas, não deram uma linha sequer sobre a
conferência, mas pinçaram trechos dos debates, sem mencionar as perguntas
nem dar por inteiro as respostas e seu contexto, transformando em discurso
meu um discurso que não proferi tal como apresentado. E entrevistaram
tucanos (até as vestais da República, Álvaro Dias e Artur Virgílio!!!),
pedindo opinião sobre o que decidiram dizer que eu disse! E os entrevistados
opinaram!!! Num jornal do Rio de Janeiro e num de São Paulo, FHC disse uma
pérola, declarando que por não entender de Espinosa, não fala nem escreve
sobre ele e que eu, como não entendo de política, não deveria falar sobre o
assunto. Como vocês podem notar, o princípio democrático, segundo o qual
todos os cidadãos são politicamente competentes, foi jogado no lixo.
Qual é o sentido disso? Deixo de lado o fato de ser mulher, intelectual e
petista (embora isso conte muitíssimo), para considerar apenas o núcleo da
relação estabelecida comigo. A mídia está enviando a seguinte mensagem:
somos onipotentes e fazemos seu silêncio falar. Portanto, fale de uma vez! É
uma ordem, uma imposição do mais forte ao mais fraco. Não é uma relação de
poder e sim de força. Vocês sabem que a diferença entre a ordem humana, a
ordem física e a ordem biológica (para usar expressões de Merleau-Ponty)
decorre do fato de que as duas últimas são ordens de presença enquanto a
primeira opera com a ausência.
As leis físicas se referem às relações atuais entre coisas; as normas
biológicas se referem ao comportamento adaptativo com que o organismo se
relaciona com o que lhe é presente; mas a ordem humana é a do simbólico, ou
seja, da capacidade para relacionar-se com o ausente. É o mundo do trabalho,
da história e da linguagem. Somos humanos porque o trabalho nega a
imediateza da coisa natural, porque a consciência da temporalidade nos abre
para o que não é mais (o passado) e para o que ainda não é (o futuro), e
porque a linguagem, potência para presentificar o ausente, ergue-se contra
nossa violência animal e o uso da força, inaugurando a relação com o outro
como intersubjetividade. Num belíssimo ensaio sobre "A experiência limite",
Blanchot marca o lugar preciso em que emerge a violência na tortura de um
ser humano. A violência não está apenas nos suplícios físicos e psíquicos a
que é submetido o torturado; muito mais profundamente ela se encontra no
fato horrendo de que o torturador quer forçar o torturado a lhe dar o dom
mais precioso de sua condição humana: uma palavra verdadeira. NÃO FALO.
Vocês já leram La Boétie. Sabem que a servidão voluntária é o desejo de
servir os superiores para ser servido pelos inferiores. É uma teia de
relações de força, que percorrem verticalmente a sociedade sob a forma do
mando e da obediência. Mas vocês se lembram também do que diz La Boétie da
luta contra a servidão voluntária: não é preciso tirar coisa alguma do
dominador; basta não lhe dar o que ele pede. NÃO FALO. A liberdade não é uma
escolha entre vários possíveis, mas a fortaleza do ânimo para não ser
determinado por forças externas e a potência interior para determinar-se a
si mesmo. A liberdade, recusa da heteronomia, é autonomia. Falarei quando
minha liberdade determinar que é chegada a hora a vez de falar.
2 comentários:
Oi nômade (posso te chamar assim?)
Curiosa com essa tua indicação de blog lá na lista Foucault & Filosofia, acabei entrando aqui. Sem rodeios, posso dizer que adorei, e que voltarei muitas vezes. Encontrei palavras que ecoam... imagens que desconcertam... e isso era tudo o que eu esperava, pois demonstra sensibilidade tb.
Um abraço e até logo!
Olá Vi,
Que bom que vc gostou, já estava pensando que os acessos do blog só vinham dos "next blog" do blogspot... Fica à vontade, passe por aqui e puxe um sepo que espero poder vincular ainda muita prosa e mate
um abraço,
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